quarta-feira, 19 de novembro de 2008

A cultura, o Estado e os diversos usos das “drogas”


Apresentação do livro Drogas e Cultura: Novas Perspectivas
A cultura, o Estado e os diversos usos das “drogas”

Gilberto Gil
Juca Ferreira


Há alguns anos acompanhamos um saudável amadurecimento acadêmico das pesquisas e dos estudos sobre os usos de “drogas” no Brasil. São antropólogos, sociólogos, historiadores, médicos, juristas, economistas e tantos outros pesquisadores revelando facetas inusitadas sobre este fenômeno do nosso cotidiano e freqüente nas nossas manchetes midiáticas. O livro Drogas e cultura: novas perspectivas representa uma síntese desse amplo movimento intelectual que oferece uma abordagem biopsicossocial dos estudos sobre “drogas”, um movimento engajado em refletir o polêmico tema frente aos seus paradoxos; um movimento que visa a fecundar um debate público mais condizente com o pluralismo, a diversidade e a democracia que caracterizam nosso país. Necessitamos, portanto, salientar algumas implicações políticas das conclusões disseminadas por este livro.
É preciso, primeiramente, tecer uma observação sobre o modo como o Estado brasileiro abordou e vem abordando esse fenômeno. O Estado intervém e determina uma política sobre as “drogas”, utilizando-se de duas atribuições fundamentais e inalienáveis: a regularização, sancionada por mecanismos legislativos, e a fiscalização, que obedece a normas penais previamente determinadas. Observamos que fomos juridicamente orientados pelos princípios do International Narcotics Control Board, fruto da Convenção da ONU de 1971. Esses princípios, devido ao contexto histórico de quando foram formulados, desconsideram algumas especificidades culturais das nações latino-americanas. Não reconhecem, por exemplo, as tradições culturais das populações indígenas e afro-descendentes, sobretudo os usos ritualísticos e culturais de algumas substâncias psicoativas (como a ayahuasca e a folha de coca). Ao desconhecer tais singularidades e ignorar os diversos contextos culturais, acaba-se por tratar de modo estanque e indiferenciado as distintas apreensões culturais e torna-se incapaz de distinguir as implicações dos diversos usos. O Ministério da Cultura, portanto, pode e deve dar visibilidade à dimensão cultural e afirmar o direito das populações brasileiras de usufruirem dos rituais xamânicos, das expressões indígenas e afro-descendentes – que reivindicam substâncias psicoativas para suas manifestações – e das festas religiosas contempladas pela nossa vasta diversidade cultural. Os usos de substâncias psicoativas inseridos em rituais religiosos ainda padecem, no Brasil e em inúmeros países, de dificuldades para afirmarem-se juridicamente.
A lei n. 11.343/06, que regulamenta as políticas brasileiras concernentes às “drogas”, diretamente infuenciada por aquela convenção da ONU, ainda não reconhece os usos culturais de certas substâncias psicoativas vinculadas a rituais, tampouco possui classificações e penalizações diferenciadas para os usos tradicionais de “drogas”. Numa frase: a atual legislação não contempla certas singularidades culturais.
A diferenciação entre o consumo próprio – individual ou coletivo – e o tráfico ainda não foi totalmente estabelecida. A ausência de tal distinção acarreta um tratamento de desconfiança moral, policial e legal frente a todos os usuários de substâncias psicoativas, independente de seus hábitos e dos contextos culturais. Precisamos balizar de um modo mais atento e detalhado as relações entre os usos, o consumo, a circulação e os direitos privados dos cidadãos brasileiros. Talvez devamos repensar e reconsiderar a relação entre o Estado, as drogas e os direitos privados. Talvez este seja um passo imprescindível para o amadurecimento das políticas públicas relacionadas às “drogas”.
Apesar do crescente reconhecimento da relevância de abordagens, estudos e pesquisas que enfatizam esses aspectos culturais do uso de “drogas”, ainda persiste uma tendência a atribuir maior legitimidade aos estudos sobre o assunto desenvolvidos no âmbito das ciências da saúde: como a medicina, a farmacologia e a psicologia. As abordagens sociais tendem a ser levadas em consideração somente quando são realizadas no âmbito do crime, do tráfico, da violência urbana ou da pobreza, sendo desvalorizadas quando enfrentam diretamente a questão do uso de “drogas” e os usos culturais. A incapacidade de lidar com a complexidade do fenômeno das “drogas” e essa opção por um tratamento unilateral influencia o campo político, onde se percebe o empobrecimento das análises e a ausência dos aspectos socioculturais na concepção das políticas públicas direcionadas a elas.
O Ministério da Cultura (MinC) vem defendendo a incorporação da compreensão “antropológica” das substâncias psicoativas, uma abordagem mais voltada para a atenção aos comportamentos e aos bens simbólicos despertados pelos diversos usos culturais das drogas. Desde 2004, o MinC vem reconhecendo o papel crucial desempenhado pela cultura e seus contextos na constituição dos efeitos produzidos pelo uso de “drogas”, tanto em nível individual quanto social. Optamos por exercer um papel propositivo na elaboração da atual política nacional sobre a matéria, reivindicando, por exemplo, um lugar no Conselho Nacional Antidrogas (CONAD) e participando ativamente de suas deliberações, buscando sempre a ênfase na redução dos danos.
O livro Drogas e cultura: novas perspectivas expressa uma valorização do papel das ciências humanas na reflexão sobre o tema das drogas e, paralelamente, procura relacionar esta análise a um extenso conjunto de discussões. Dessa forma, os artigos que compõem o presente livro abordam o uso desse tipo de substância em contextos culturais e históricos diversos. Indicam que, longe de se limitar a um vínculo com o problema da violência ou da criminalidade social, o consumo de “drogas”, desde sempre, remeteu a várias esferas da vida humana, ligando-se a fenômenos religiosos, movimentos de construção (ou reconstrução) de identidades de minorias sociais, étnicas, geracionais, de gênero, ou ainda a produções estéticas. No livro, estudiosos partem de diferentes disciplinas e trajetórias de pesquisas enfocando os cenários socioculturais que envolvem o seu uso. Aponta-se, deste modo, que fatores de ordem moral e cultural possuem uma ação determinante na constituição de padrões reguladores ou estruturantes do consumo de todos os tipos de “drogas”. Escapa-se de uma visão simplista sobre o assunto, destacando que o tema deve ser abordado preferencialmente de uma perspectiva multidisciplinar, já que a sua compreensão envolve a consideração de diversos aspectos, como os farmacológicos, psicológicos e socioculturais. Não se trata, portanto, de colocar a perspectiva das ciências humanas como a mais relevante, nem de desconsiderar os riscos e as complexidades bioquímicas do uso dessas substâncias, mas de abrir mais espaço para esse tipo de reflexão na discussão sobre as drogas na atualidade.
Estamos no terreno das culturas; todas elas partem da enorme diversidade de práticas, representações, símbolos e artes que habitam o Brasil. Para o bem e para o mal, as “drogas” são e estão na cultura. Ou melhor, nas culturas e, portanto, não podem ser entendidas fora delas.
Este livro estimula a refletir com mais atenção sobre os diversos usos das drogas pelas populações. Essa diversidade de usos e consumos é o espelho da nossa própria diversidade cultural. Nossos pesquisadores e nossa legislação devem, em alguma medida, levar em consideração a dimensão cultural para cunhar políticas públicas mais eficazes e mais adequadas à contemporaneidade.

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